sábado, outubro 26, 2002

Diálogo com um dependente químico (alcoolismo)


Isso era pra ser uma entrevista para um trabalho que minha irmã tinha que fazer para a faculdade, mas acabou se tornando uma conversa. Coloco isso aqui para que os leitores percebam que nem todo mundo é bêbado por livre e espontânea vontade... Bem, não quero comentar muito aqui, vou esperar que vocês comentem e aí a gente começa opinar sobre isso.

A conversa ocorreu num lugar chamado "Abrigo João Viana" (aqui em Campos dos Goytacazes/RJ), que é de um hospital
psiquiátrico, e a pessoa entrevistada se encontra internada neste hospital.

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Aluna: Como você veio parar aqui? Por quê? Eu queria que você falasse o que você tivesse vontade...

Entrevistado: Foi por causa do álcool, é que minha profissão é pedreiro, né? Trabalho muito tempo com obra, e devido à constância de bebidas fui perdendo, não obras, mas família, muitos créditos de confiança. E vim parar aqui dentro porque eu tive força de vontade pra poder parar de beber. Porque o álcool te destrói muito lá fora. Você fica sem confiança, você fica sem crédito. “Ah, mas eu trabalho o dia todo, chego de tarde e bebo com o meu dinheiro” é o tal do bêbado ignorante, que acha que a ignorância é...

A: O dinheiro é dele ele pode fazer o que quiser.

E: É, é dele e ele pode fazer o que ele quer. Mas acontece que não é assim. Quando você pára aqui dentro é que você vem passar no que fez, no que você faz lá fora. Aqui dentro é que você vai vendo que... Sua mente a começa a refletir no que você...

A: Já fez...

E: Perdeu lá fora, vai perdendo e cada vez que você... Cada um porre, cada um trago de bebida que você vai dando, um gole, você vai perdendo um pouco da sua saúde. Muita gente não pensa... Mas só quando pára aqui dentro...

A: Aí você foi ver isso só quando você veio para cá, né?

E: É, porque você parou uma semana...

A: Você pára pra pensar...

E: Você pára pra pensar, você pára pra refletir...

A: Tudo que já passou, tudo que você já perdeu...

E: Tudo que perdeu... Família, porque pai e mãe não tenho, mas esposa foi perdendo, você vai perdendo o carinho que irmã, parente, ente querido, essas pessoas, você vai perdendo tudo. Aí você vai vendo que é um afastamento...

A: Que você precisa mudar e...

E: É, você tem como mudar, mas basta você querer. Não é a mesma coisa que você...

A: Você precisa de uma ajuda, né? E você, buscou ajuda?

E: É, você busca ajuda aqui dentro, né? Como hoje tem o grupo do AA [Alcoólicos Anônimos] que já te fortalece mais, que vai passando sua troca de experiência, no diálogo com um, diálogo com outro, você vai vendo o que a bebida faz. Mas tem muita gente que não entende. Porque o alcoolismo é uma doença...

A: É, tem gente que acha que a pessoa faz porque quer, né?

E: Porque quer e porque é sem-vergonha. Acha que “ah, fulano bebe porque é sem-vergonha, porque não tem força de vontade”, mas não.

A: E você acaba ficando dependente, né?

E: Dependente. Eu já levei um ano e dois meses parado, sem bebida, mas a vida ficou boa, estabilizou tudo normal, ficou ótimo, mas por causa de uma simples dose voltou tudo de novo, e volta pior.

A: Você volta com mais vontade, já tinha um tempo parado, acaba voltando...

E: Parado... Então aquele um ano e dois meses parece que fica dois anos e quatro meses sem beber nada. Então volta pior. Você bebe muito mais. Aí tudo vai se acabando... E fora as agressividades que a pessoa passa também, né?

A: Porque as outras pessoas não entendem...

E: Não entendem e a pessoa também fica agressiva, as vezes a pessoa fala uma coisa com você e você acha que...

A: Logo fica nervoso...

E: Nervoso e a pessoa está falando alguma coisa com você, e você abaixa a cabeça ou as vezes revida com outras palavras piores, com palavrões, e a vida não é assim. A vida a gente tem que ver que ela tem dois lados. Mas são dois lados bons, mas tem pessoa que vê como uma faca de dois gumes: é o lado ruim e o lado bom. Ela tem o lado ruim, que é a parte que corta, e ela tem o lado que não corta, que é as costas dela. Mas a gente tem que observar também que a vida não é só tragédia, só derrota. Tem vitória também, mas basta você querer. E aqui dentro que eu fui pensar, analisar, observar a vida e o quê que ela é. Porque muitas vezes, quando você pára aqui dentro pensa assim “Poxa, minha família não teve pena de mim, não teve compaixão”. Mas a gente tem que lembrar também que a gente apronta muito quando bebe dentro de casa.

A: A gente acaba magoando as pessoas, mas sem querer.

E: É. Porque as vezes você levanta no outro dia e não lembra o que fez...

A: Você não sabe e vai conversar com a pessoa e ela já te trata diferente...

E: Já trata diferente e as vezes eu... Eu, por causa de morar sozinho, as vezes minha irmã passava lá em casa e falava “E aí? Vai almoçar hoje?”. “Eu vou ver”. Ela “Nesse vou ver seu, eu já sei que hoje você não almoça, porque ou você vai trabalhar ou você vai beber”. E eu falei “Nenhuma das duas coisas, hoje eu fico dentro de casa”. Que nada. Dava meia hora dentro de casa, tomava um golinho de café que eu coava e saía pra rua. Engatava na bebedeira, chegava em casa quatro, cinco horas da tarde, tomava um banho, ia deitar. Dormia sem janta, sem almoço e acordava no outro dia péssimo. De novo para a bebedeira... Até que cheguei perto dela e falei “Dá pra você me ajudar?”. Aí ela: “Em quê? Dinheiro eu não te arrumo, serviço você tem de mais. É só você sair pra receber que o seu serviço está todo terminado”. É que eu pego e boto gente pra trabalhar pra mim e eu vou fazendo as empreitadas, vou botando gente e só vou receber no final de semana. E eu falei: “Não, uma internação. Porque eu já não agüento mais essa vida, todo dia banho com fogo, banho com ‘fogasso’”. Aí ela: “E a comida que eu estou mandando pra você? Você está comendo?”. Aí eu falei: “Nem um pouco”.

A: Mas ela mandava sempre comida pra você?

E: Sempre mandando comida pra mim. “E você já comeu tudo?”. E eu: “Vai lá em cima e vê”. Chegou lá, as quatro vasilhas com comida chega estava azeda. E ela: “É. O jeito é uma internação mesmo, já que você quer. Você vai estar vindo por sua vontade, eu não estou te obrigando a nada. Você que está pedindo”. Aí foi aonde que ela veio e conseguiu uma internação aqui, aí que eu vim aqui. E só aqui que eu paro. As vezes os colegas ainda brincam: “Que eu vou sair daqui, beber...”. E eu digo: “É gente”. Mas se você pensar no quê que perdeu nem quer beber mais.

A: Se você sabe que você tem esse problema de dependência, né? Pra quê que você vai voltar a beber se você pode ter uma vida normal, saudável, sem a bebida? Que prazer que isso vai trazer pra você?

E: E fora o estrago que ela faz por dentro da pessoa.

A: É. Faz muito mal a saúde...

E: Eu levei muitos dias sentindo dores por dentro, e até conversei com o médico. E o médico “Não, isso aí é normal da bebida mesmo. É a bebida que faz isso. Os remédios que você está tomando é que estão fazendo efeito devagar. Até uns quinze dias você vai sentir isso”.

A: Pra poder ir eliminando o álcool, né?...

E: Então eu sei o que passei durante esses quinze dias.

A: E você já está aqui há quanto tempo?

E: Um mês e doze dias. Já estou de alta. Mas em um mês e doze dias você já dá pra pensar bastante.

A: Já pensou bastante sobre a vida, né? Então está bom. Que você possa ter essa força de vontade. Continuar com essa força de vontade que você tem. E parar sempre pra refletir sobre sua vida, né? Não é ficar pensando o que ficou pra trás de ruim, mas sim com alguma validade do que ficou de ruim passar. E daí em diante, seguir sempre querendo mais, querendo o melhor...

E: É, pensar pra frente. Não pra trás.

A: Isso aí. Pensar pra frente.

E: Mas é bom de vez em quando você relembrar o passado, que aí você...

A: Pra você não cair de novo, né?

E: Não cair de novo, você não pisar na tábua em falso.

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